BONS COSTUMES: CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO

Embora seja cláusula geral tradicional e com previsão em diversos dispositivos do Código Civil, observa-se uma insipiente aplicação dos bons costumes, sendo estes muitas vezes utilizados, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, como meros topos retóricos, ao lado de outras cláusulas gerais como a boa-fé, a função social e a ordem pública. Em grande parte, a causa para esse fenômeno é a inexistência de muitas obras atuais a respeito do assunto.  Neste contexto, é oportuno apresentar alguns critérios que permitam aplicação consentânea dos bons costumes.

Em termos gerais, os bons costumes consistem em uma abertura do sistema jurídico a preceitos morais ou ético sociais, que teriam relevância jurídica e cuja função seria exercer restrição a atos de autonomia de caráter existencial. Não é por outra razão que temos a previsão a respeito dos bons costumes em uma ampla gama de assuntos, que vão desde os direitos da personalidade, a vedar atos de disposição do próprio corpo (CC, art. 13[1]), a vedação  à estipulação de determinadas condições (CC, art.122[2]), a elemento da ilicitude do objeto (CC,  art. 104, II[3]), a elemento do exercício abusivo de direito (CC ,art.187[4]),  a vedação ao uso disfuncional das unidades autônomas em condomínio edilício (CC, art.1.336,  IV[5]), até chegar aos  limites poder familiar (CC, art.1.638, III[6])

Tradicionalmente, a locução “bons costumes” é compreendida como sinônimo de “moral social”, vale dizer, um conjunto de comportamentos reiterados e considerados como obrigatórios por determinada sociedade e em determino tempo. Embora seja útil para a compreensão da cláusula geral, referida compreensão deve ser atualizada a fim de atender a realidade social atual, plural e complexa, em que já não se observa padrões homogêneos de moralidade. Destarte, tem-se defendido a adoção um mínimo padrão ético-jurídico comum para a valoração dos “bons costumes, consubstanciado nos valores que fundamentam os princípios e regras da Constituição Federal (e.g. dignidade da pessoa humana, liberdade, proteção à saúde psicofísica etc.)

Advirta-se que não é objetivo do presente artigo tecer considerações específicas a cada uma das previsões legais a respeito dos bons costumes, e sim apresentar uma metodologia, ainda que em breves palavras, que permita uma melhor interpretação e aplicação da cláusula geral de bons costumes. Para tanto, serão apresentados três grupos de casos ou situações nos quais se admitirá ou não o recurso aos bons costumes.

a)        atos de autonomia de eficácia pessoal não se admite  incidência de bons costumes[7]. Por se tratar de interesse ligado unicamente ao indivíduo e que não acarreta lesão ou ameaça de lesão à esfera jurídica de outrem, deve se entender que não existe qualquer limitação à prática do ato. A justificativa é que ato existenciais somente podem ser externamente restringidos caso sua repercussão possa acarretar danos à outras pessoas sejam singularmente consideradas ou à coletividade em geral.  A título de exemplo, podemos citar os adeptos de tatuagem. Embora o Código Civil, em seu art. 13, vede a disposição de partes do corpo que violem os “bons costumes”, há muito se compreende que não incide a cláusula geral, por se tratar de ato existencial incapaz de causar prejuízos a terceiros. O mesmo raciocínio se pode aplicar ao transplante de órgãos ou partes do corpo (e.g. rins, parte do fígado, parte do pulmão, medula, sangue), desde que observada a legislação incidente a respeito do tema.  Por outro lado,  considerando a doação de órgãos,  haverá a incidência dos bons costumes caso haja eventual mercantilização da prática da doação, ou que caso o procedimento acarrete lesão irreparável à saúde do doador.

Outro exemplo a afastar a incidência dos bons costumes, é eventual negócio jurídico que tenha por objeto a prestação de serviços sexuais. Embora haja controvérsia a respeito, entende-se que deve ser admitida a validade do negócio jurídico firmado, em especial para vedar o enriquecimento sem causa em situações em que houve a prestação do serviço sem a contraprestação pelo outro contratante. Destaca-se o recente acórdão em apelação proferido pela 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que entendeu ser cabível de tutela jurídica ação de cobrança de garoto de programa contra cliente e assim reformar a r. sentença que havia indeferido a petição inicial, extinguindo o processo. Para afastar a incidência dos bons costumes, o relator Des. Morais Pucci argumentou que a prostituição em si não é crime, logo seria lícito o contrato verbal de prestação de serviço, além de afirmar que “A Justiça não deve fechar os olhos à evolução da sociedade, precisa estar atenta às suas transformações”.[8]

a)        atos de autonomia de eficácia interpessoal se admite a incidência de bons costumes, em concreto. Nesse grupo de situações, haverá a incidência da cláusula geral de bons costumes pelo fato de o ato praticado gerar lesão ou ameaça lesão à esfera jurídica de terceiros. O que deve se observar é se o ato, em concreto, viola ou é capaz violar direitos de pessoas identificáveis. Haverá, aqui, evidente conflito de interesses a ser solucionado pelo Poder Judiciário. Como exemplo é possível citar a possibilidade de perda do poder familiar pelo pai ou mãe que praticar “atos contrários a moral e aos bons costumes” prevista no art. 1683, inciso III, do Código Civil. Em relação aos bons costumes, caberá ao julgador verificar se a conduta de um dos pais é capaz de causar prejuízos ao filho. Concretamente, podemos pensar na conduta da mãe que faz de seu lar, onde convive com o filho, local para a prática de prostituição com grande circulação de clientes, colocando o menor em situação de risco, em clara violação ao princípio do melhor interesse da criança (CF, art. 227).

b)        atos de autonomia de eficácia social admite-se a incidência de bons costumes, inclusive em abstrato. No grupo de situações, estarão atos de autonomia que possam gerar lesão ou ameaça de lesão a um número indeterminado de pessoas. Aqui, há um mandamento ao legislador que ficará autorizado a dispor em lei restrições gerais e abstratas a autonomia existencial tendo em vista a necessidade de garantia dos direitos individuais dos potenciais atingidos. A título de exemplo, tem-se a atual legislação que proíbe a exploração comercial de jogos de azar a exemplo de bingos e caça níqueis que, sabidamente, além de prejuízos econômicos também gera danos psíquicos, ante a conhecida possibilidade de dependência.

Pelo visto não há dúvida que ainda há muito a ser discutido a respeito da aplicação da cláusula geral de bons costumes, mormente quando se espera que os critérios de “moralidade social” sejam compatíveis com a sociedade atual e com os princípios e regras previstas na Constituição Federal. Embora a liberdade seja algo a ser preservado, esta não é absoluta, podendo ser restringida quando presentes interesses legítimos de terceiros ou da coletividade. Por essa razão, cabe ao julgador, ter a sensibilidade para melhor aplicação a cláusula geral.

Por Yuri Pimenta Caon.

REFERÊNCIAS:

[1] Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

[2] Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

[3] Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:  II- objeto lícito, possível, determinado ou determinável.

[4] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[5] Art. 1.336. São deveres do condômino: IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

[6] Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

[7] Referido critério é apresentado por  Thamis Dalsenter Viveiros de Castro em sua tese de doutorado publicada pela  editora  Almedina:  “   Bons Costumes no  Direito Brasileiro.  São Paulo: Almedina,  2017,  p. 175

[8] https://www.conjur.com.br/2021-mai-14/contrato-verbal-prostituicao-nao-ilicito-decide-tj-sp/

Gabriele Bandeira Borges