Ribeiro Cury

A RENÚNCIA ANTECIPADA À HERANÇA EM PACTO ANTENUPCIAL: AUTONOMIA PRIVADA VERSUS PROIBIÇÃO DO PACTA CORVINA

Já há algum tempo, discute-se a possibilidade de renúncia antecipada à herança no contexto do pacto antenupcial. As recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que vêm reconhecendo a validade dessa renúncia entre cônjuges no momento da lavratura do pacto antenupcial, confrontam-se com a proibição decorrente do princípio do pacta corvina.

Como se sabe, o princípio do pacta corvina, fundamentado no artigo 426 do Código Civil, estabelece que a herança de pessoa viva não pode ser objeto de contrato. Essa proibição, com raízes no direito romano, visa, fundamentalmente, evitar a especulação sobre a morte alheia e proteger a liberdade do titular dos bens de dispor deles em vida ou por testamento até seu último momento.

No entanto, as decisões recentes do TJ-SP, em casos que envolvem a renúncia recíproca ao direito sucessório concorrencial em regime de separação total de bens por meio do pacto antenupcial, parecem desafiar essa tradicional proibição.

O Tribunal bandeirante vem se posicionando no sentido de que, nesse contexto específico, a manifestação expressa e consciente da vontade dos cônjuges em renunciar a esse direito deve ser respeitada como expressão da autonomia privada. Assim, referida renúncia não se configuraria como pacta corvina, pois o potencial herdeiro apenas abdicaria de uma expectativa de direito antes da abertura da sucessão, não dispondo efetivamente do patrimônio de pessoa viva.

Contudo, essa interpretação levanta considerações relevantes. Se, por um lado, os defensores dessa visão argumentam que os nubentes desejam manter seus patrimônios absolutamente distintos — afastando inclusive a possibilidade de o cônjuge tornar-se herdeiro necessário —, o que poderia frustrar essa intenção, por outro lado, é preciso considerar a possível vulnerabilidade do cônjuge em situação de dependência econômica.

A decisão do TJ-SP, ao permitir a renúncia antecipada, alinha-se àqueles que defendem a garantia da autonomia da vontade das partes, permitindo que o planejamento patrimonial realizado no pacto antenupcial produza plena eficácia. Entende-se, ainda, que, desde que a decisão seja tomada de forma livre, consciente e informada, os indivíduos devem ter a liberdade de dispor sobre seus direitos futuros, dentro dos limites legais. A obrigatoriedade de aguardar a abertura da sucessão para renunciar poderia ser vista, nesse ponto de vista, como uma limitação desnecessária à liberdade individual.

Contudo, esse posicionamento também suscita críticas e preocupações relevantes. Como mencionado, um dos principais pontos de atenção é a eventual situação de vulnerabilidade econômica do cônjuge. A renúncia antecipada, ainda que feita de forma consciente no momento da celebração do pacto, pode gerar consequências graves no futuro, especialmente se houver mudança significativa na condição financeira ou de saúde de um dos cônjuges. Em momento de luto e fragilidade, o cônjuge sobrevivente pode se ver desamparado, sem a proteção patrimonial que o direito sucessório lhe garantiria.

Além disso, a tradicional interpretação do artigo 426 do Código Civil, que veda qualquer negócio jurídico que tenha por objeto a herança de pessoa viva, coaduna-se com o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente com o artigo 104, inciso II, que determina que a validade do negócio jurídico depende de objeto lícito, possível e determinado ou determinável.

Dessa forma, ainda que se tente superar o requisito da licitude com os argumentos pró-renúncia, entendemos que não se supera o requisito da possibilidade do objeto, uma vez que a herança somente passa a existir no mundo jurídico com a abertura da sucessão — isto é, com o falecimento do autor da herança. Assim, o direito à herança apenas se concretiza com a morte do autor da sucessão, sendo prematuro e, portanto, nulo, qualquer ato de disposição anterior.

Retomando as disposições legais, observa-se que o direito positivo brasileiro estabelece, de forma clara, que a aceitação ou a renúncia da herança são atos que só podem ocorrer após a abertura da sucessão, conforme previsto nos artigos 1.784 e 1.804 do Código Civil.

Apesar disso, é fato que o anteprojeto de reforma do Código Civil brasileiro previu expressamente a possibilidade de renúncia recíproca à condição de herdeiro entre cônjuges e conviventes por meio de pacto antenupcial ou escritura pública. Essa proposta legislativa sinaliza um reconhecimento da importância de adequar o direito sucessório às novas realidades sociais e familiares, o que representaria uma significativa mudança no direito das famílias brasileiras.

É crucial destacar que, mesmo diante da renúncia ao direito sucessório concorrencial, o cônjuge renunciante ainda pode ser beneficiado por testamento. Como é sabido, a legislação brasileira garante liberdade de testar até 50% do patrimônio disponível para quem o testador desejar, inclusive em favor do cônjuge que renunciou ao direito de herança na concorrência com herdeiros necessários.

Em suma, a questão da renúncia antecipada à herança em pacto antenupcial é complexa e envolve uma tensão entre princípios fundamentais do direito civil, como a proibição do pacta corvina e a valorização da autonomia privada. Se a autorização para renúncia antecipada for realmente incorporada ao ordenamento, será fundamental que essa faculdade seja utilizada com cautela, garantindo que a vontade dos cônjuges seja livre, consciente e informada, a fim de se evitarem abusos e situações de desamparo.

De toda forma, se você tem preocupações com seu futuro e com as consequências da sucessão para seus herdeiros, é altamente recomendável consultar uma advocacia especializada na área para melhor compreender as possibilidades existentes e planejar adequadamente o seu patrimônio.

Por Victor Pacheco Merhi Ribeiro