Ribeiro Cury

A GRATUIDADE JUDICIÁRIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO MEIO PARA GARANTIR O AMPLO ACESSO À JUSTIÇA

A concessão do benefício da gratuidade de justiça a crianças e adolescentes é um tema que, por vezes, ainda gera controvérsias. A questão vem da análise da insuficiência de recursos do menor, eis que, frequentemente, a praxe forense destoa do entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O entendimento do STJ, conforme reiterado no julgamento do REsp 2.057.894/SP[1], é no sentido de que a análise da capacidade econômica deve recair sobre o próprio menor, e não sobre seus genitores, por serem meros representantes legais.

Porém, na prática forense, verifica-se que decisões proferidas em varas de família não seguem a diretriz dos enunciados do STJ, que servem justamente como referência para julgamentos dentro da jurisdição estadual. É comum, inclusive, a utilização de documentos como declarações de imposto de renda dos genitores como fundamento para a revogação da gratuidade já concedida.

Nesse cenário, o presente artigo se propõe a expor o panorama da legislação pertinente e da jurisprudência a respeito da gratuidade de justiça para crianças e adolescentes. Serão evidenciados seus contornos, limites e, especialmente, seus fundamentos constitucionais e processuais.

Ilustramos a relevância desse debate e as consequências práticas dessa interpretação com um caso de execução de alimentos. Imagine-se uma lide onde, após o questionamento pelo genitor, o juízo reconsiderou a decisão que havia concedido a gratuidade judiciária sob o argumento de que “a parte possui renda incompatível com o benefício, não demonstrando situação de insuficiência econômica nos termos do artigo 98 do CPC”. Todavia, a decisão foi proferida em um processo no qual o polo ativo era ocupado por uma criança de apenas quatro anos de idade.

Contudo, a decisão em comento, ao adotar tal interpretação, desconsiderou que o menor é, por natureza, hipossuficiente e, analisando a capacidade econômica da genitora atribuiu à esta, que não figurava como parte ativa do processo, a responsabilidade pela comprovação da hipossuficiência, ao utilizar os documentos que demonstravam os seus rendimentos como fundamento para a revogação da benesse.

Há que se registrar que a gratuidade da justiça tem natureza individual e personalíssima. Assim, quando se trata de parte menor, a presunção de hipossuficiência se dá em seu favor de maneira autônoma, não dependendo da condição financeira dos pais ou responsáveis legais.

Dessa forma, essas divergências nos entendimentos não apenas oneram indevidamente os menores com o pagamento de custas e despesas processuais, mas representam um verdadeiro entrave ao direito fundamental ao amplo acesso à justiça, assegurado pela Constituição Federal em seu art. 5º, inciso LXXIV.

Além disso, conforme se depreende do art. 99, § 6º, do Código de Processo Civil, “o direito à gratuidade da justiça é pessoal, não se estendendo a litisconsorte ou a sucessor do beneficiário, salvo requerimento e deferimento expressos”.

Por esse motivo, o juízo deve negar os pedidos de impugnação à gratuidade judiciária baseados na capacidade econômica dos genitores, pois estes afetam o sistema de garantias constitucionais voltado para os mais necessitados.

Deve haver ainda mais cautela, em especial nas ações de execução de alimentos, que possuem caráter de subsistência para garantia de uma vida digna e o pleno desenvolvimento do alimentando.

Aliás, a natureza personalíssima do direito à gratuidade de justiça é objeto de amplo consenso na doutrina, como bem destacam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:

O pedido de gratuidade é personalíssimo. Evidentemente, a situação econômica que justifica o pagamento, ou não, das custas e despesas processuais é de cunho igualmente individual. Permitir que tal benefício se estenda aos litisconsortes ou sucessores é dar margem ao seu uso indevido. [2]

No mesmo sentido, Fredie Didier Jr salienta “em uma ação de alimentos proposta por um filho incapaz, o pai ou mãe pode ser o seu representante processual. A parte é o incapaz; o pai ou a mãe pode ser apenas o seu representante, e não o seu substituto processual”[3].

À luz do entendimento do STJ, a Terceira Turma, ao apreciar o Recurso Especial n. 2.057.894/SP, deu provimento para deferir ao recorrente o benefício da gratuidade da justiça, uma vez que não se admite o indeferimento com base exclusiva na condição socioeconômica da genitora ou no valor nominal dos alimentos vigentes. Vejamos o trecho da Ministra Nancy Andrighi:

Com efeito, o fato de a representante legal do beneficiário possuir atividade remunerada e o elevado valor da obrigação alimentar que é objeto da execução não podem, por si só, servir de impedimento à concessão da gratuidade de justiça às crianças ou adolescentes que são os credores dos alimentos, em favor de quem devem ser revertidas as prestações com finalidades bastante específicas e relevantes

No âmbito dos tribunais de justiça, oportuno destacar um julgado da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo de 2024, que deu provimento a um agravo de instrumento interposto contra a decisão que, indeferiu pedido de gratuidade formulado pelo menor, representado por sua genitora. Vejamos:

Agravo de instrumento. Justiça gratuita. Menor impúbere. Incapacidade financeira presumida. Ausência de renda própria. REsp 1807216/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRATURMA, julgado em 04/02/2020: “O direito ao benefício da gratuidade de justiça possui natureza individual e personalíssima, não podendo ser automaticamente estendido a quem não preencha os pressupostos legais para a sua concessão e, por idêntica razão, não se pode exigir que os pressupostos legais que autorizam a concessão do benefício sejam preenchidos por pessoa distinta da parte, como o seu representante legal”. Gratuidade deferida. Plano de Saúde. Paciente com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Prescrição, pelo médico que acompanha seu quadro clínico, de tratamento com óleo a base de Cannabis da marca ISOSPEC AUTTRUM 1500mg CBD:1500mg CBG + CBGA. Decisão recorrida que indeferiu a tutela de urgência . Enfermidade que tem cobertura obrigatória, além do preocupante quadro de saúde apresentado pelo autor. Relatório médico que deixa clara a necessidade do medicamento prescrito para que não haja comprometimento do plano terapêutico. Expressa autorização da ANVISA para importação e uso pelo agravante. Presença dos requisitos do art . 300 do CPC. Recurso provido.[4]

Em outro caso, fora do âmbito do direito de família, a 3ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios concedeu, por unanimidade, a gratuidade de justiça a menor impúbere em ação de obrigação de fazer cumulada com indenização, reformando decisão de 1º grau que a havia negado com base na renda familiar do genitor[5].

Em contrapartida, o Tribunal de Justiça de Goiás, ao julgar agravo interno em agravo de instrumento em ação indenizatória proposta por menor contra uma companhia aérea, manteve o indeferimento da gratuidade de justiça[6].

A Desembargadora Relatora, Juliana Pereira Diniz Prudente, entendeu que não havia comprovação cabal da hipossuficiência do menor, uma vez que a presunção de insuficiência econômica para crianças e adolescentes possui natureza relativa, exigindo prova concreta e a análise detida do caso, a qual deve incluir a situação financeira dos representantes legais.

O acórdão destacou que o direito material buscado (indenização por danos de viagem internacional) não implica redução do padrão de vida do menor, diferentemente de ações de alimentos.

Dessa forma, essas decisões criam um ambiente de insegurança jurídica para o menor, especialmente em ações de alimentos, que precisam de uma prestação jurisdicional célere e efetiva.

É de se consignar que o amplo acesso à justiça só será alcançado com a uniformização do entendimento sobre o assunto. Observamos que, apesar das decisões reiteradas do STJ, ainda existem divergências nas instâncias inferiores.

Não bastasse tal fato, ao tratar alguns casos de forma diferenciada sob o pretexto de relatividade, o Judiciário não contribui para o cumprimento efetivo da lei e para a promoção da justiça social.

Embora no âmbito processual civil a análise de questões deva ocorrer com um olhar atento a depender das situações práticas, a inobservância da presunção de hipossuficiência do menor desvirtua a finalidade da lei. Essa divergência jurisprudencial acaba por criar ou modificar um ônus indevido.

Portanto, a análise do presente artigo demonstra que cabe ao Poder Judiciário reforçar a presunção de hipossuficiência do menor, aplicar de forma coerente e uniforme a legislação pertinente e assegurar o acesso de crianças e adolescentes à justiça, garantindo, como prioridade absoluta, a proteção célere e efetiva de seus direitos.

Por Gabriele Bandeira Borges.

 

REFERÊNCIAS:

[1] STJ – REsp: 2057894 SP 2023/0078097-2, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 17/10/2023, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/10/2023

[2] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 523)

[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. Salvador: Jus Podivm, 2017. v. 1,p. 401

[4] TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2071750-91.2024 .8.26.0000 São Paulo, Relator.: Enio Zuliani, Data de Julgamento: 06/06/2024, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/06/2024

[5] TJ-DF 07074868620248070000 1882282, Relator.: ANA MARIA FERREIRA DA SILVA, Data de Julgamento: 20/06/2024, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 05/07/2024

[6] TJ-GO – Agravo de Instrumento: 57115854820238090079 GOIÂNIA, Relator.: Des(a). JULIANA PEREIRA DINIZ PRUDENTE, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: (S/R) DJ de 04/12/2023