Ribeiro Cury

A INFÂNCIA BRASILEIRA EM CONTRASTE COM O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”

(provérbio africano)

 

O dia 12 de outubro é conhecido no Brasil como “Dia das Crianças”, data que passou a ser celebrada por motivos comerciais, após campanha publicitária de uma fabricante de brinquedos em 1960. Apesar disso, é uma data que pode trazer reflexões para além do consumismo.

À luz do ordenamento jurídico, a data relembra a obrigação da sociedade, da família e do Estado a uma responsabilidade coletiva pelas crianças e adolescentes. Esta comemoração serve de lembrete de que meninas e meninos são, antes de tudo, sujeitos de direitos.

Este paradigma foi formalmente estabelecido no Brasil com a Constituição Federal de 1988, reforçado pela adesão à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, e consolidado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990. Este arcabouço legal visa garantir que crianças e adolescentes contem com proteção legal plena de seus direitos fundamentais, dada sua condição peculiar de desenvolvimento.

Nesse sentido, a determinação central que rege a legislação brasileira relacionada a crianças e adolescentes é o princípio da prioridade absoluta. Segundo o art. 227 da Constituição e o art. 4º do ECA, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Esta prioridade absoluta também se traduz na “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” (art. 4, parágrafo único, alínea c, do ECA).

O ECA ainda consagra, em seu art. 16, a extensão do direito à liberdade de crianças e adolescentes, incluindo o direito de ir, vir e estar em logradouros públicos e espaços comunitários, bem como o direito de opinar e se expressar (inciso II), de participar da vida familiar e comunitária (inciso V) e de participar da vida política (inciso VI). A reivindicação para que esses sujeitos sejam parte ativa da construção da democracia e dos processos políticos brasileiros é, portanto, assegurada por lei.

Nesse sentido, o direito à infância plena está intrinsecamente ligado ao direito à cidade. Para que uma criança cresça saudável e em liberdade, é necessária uma cidade justa, viva, inclusiva e cuidadora. Porém, na prática, a realidade da infância brasileira é muito distante do ideal assegurado pelo ECA.

É certo que, da mesma forma que ocorre com adultos, no caso de crianças e adolescentes a negação dos direitos nas periferias é sentida de forma mais aguda. Quando a cidade nega a estrutura necessária para viver plenamente, ela segrega desde a infância, definindo quem pode ser um cidadão pleno com base em suas condições sociais.

Acerca disso, destaca-se o relatório “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025”, elaborado pela Fundação Abrinq, que traz dados atualizados que evidenciam a urgência de medidas efetivas para garantir os direitos das crianças e adolescentes no país. Cumpre ressaltar alguns dados do relatório:

  1. Pobreza e Desigualdade Social: Em 2023, 43,3% das crianças de até 12 anos de idade viviam em situação de pobreza, com renda mensal domiciliar per capita de até meio salário-mínimo. Para as crianças de até 6 anos, essa proporção era de 46,5%, o que equivale a 9,4 milhões de crianças.
  2. Moradia e Saneamento: A moradia inadequada compromete todos os demais direitos (saúde, educação, lazer, segurança). Em 2022, 31,5% das pessoas que residiam em favelas e comunidade urbanas tinham até 19 anos de idade, representando 4,3 milhões de indivíduos. Além disso, 8,2 milhões de crianças e adolescentes de até 19 anos não tinham acesso à rede geral de distribuição de água, e 22,9 milhões de indivíduos nessa faixa etária não eram atendidos pela rede de esgotamento sanitário.
  3. Educação infantil: O desenvolvimento integral na primeira infância é comprometido pela falta de acesso a creches. Em 2022/2023, a proporção de crianças de 0 a 3 anos matriculadas em creches era de apenas 36,8%, abaixo da Meta 1 do Plano Nacional de Educação. Além disso, milhares de creches ainda carecem de infraestrutura básica, como parques infantis e banheiros adequados à educação infantil.
  4. Violência: O ECA determina a proteção contra todas as formas de negligência e violência. Contudo, em 2023, foram notificados 5,2 mil homicídios de crianças e adolescentes com até 19 anos de idade, sendo que a taxa de homicídios de crianças e adolescentes pretos e pardos é muito superior à de crianças e adolescentes brancos. Ademais, a violência sexual, principalmente ocorrida no ambiente de residência, e a negligência e o abandono são violações graves e persistentes dos direitos previstos em lei.
  5. Trabalho Infantil: Em 2023, 4,2% da população de 5 a 17 anos de idade se encontra em situação de trabalho infantil no Brasil, o que equivale a 1,6 milhão de crianças e adolescentes. Apesar de ser essencial lutar pela erradicação do trabalho infantil, cumpre destacar que houve uma queda histórica de 14,3% entre 2022 e 2023.

Assim, verifica-se que ainda há um grande caminho para se cumprir as determinações do ordenamento jurídico brasileiro, assegurando a prioridade absoluta e transformando o ECA em realidade concreta para toda criança brasileira, especialmente aquelas que residem nas periferias e que não têm acesso ao mínimo necessário para uma vida digna. Uma cidade boa para as crianças será, inevitavelmente, uma cidade boa para todas e todos.

 

Por Carla Martins de Oliveira.