Ribeiro Cury

Desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das relações de consumo

Em linhas gerais, o princípio da autonomia patrimonial, decorrente da personalidade jurídica própria das empresas, estabelece uma separação entre o patrimônio da empresa e o patrimônio pessoal dos sócios ou administradores, devendo a pessoa jurídica, com seu patrimônio próprio, responder pelas dívidas contraídas em seu nome.

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem por objetivo afastar essa autonomia patrimonial, permitindo que o patrimônio pessoal dos sócios ou administradores seja alcançado para adimplir dívidas contraídas em nome da empresa.

Há duas teorias que tratam da desconsideração da personalidade jurídica:

(a) “teoria maior”: exige-se, para que ocorra o afastamento da autonomia patrimonial, a comprovação do uso abusivo da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial; como se vê, segundo essa teoria, prevista no art. 50 do Código Civil, o patrimônio pessoal dos sócios ou administradores somente poderá ser alcançado se ficar comprovado o uso fraudulento ou abusivo da pessoa jurídica.

(b) “teoria menor”: para que ocorra a desconsideração da personalidade jurídica, basta que a empresa, de alguma maneira, funcione como “obstáculo” para o ressarcimento do prejuízo causado, dispensando-se a comprovação de uso abusivo ou fraudulento da personalidade jurídica; em outras palavras, de acordo com essa teoria, a simples constatação de inadimplência ou insolvência já é suficiente para o afastamento da autonomia patrimonial, permitindo que o patrimônio pessoal dos sócios ou administradores seja atingido para responder pelas dívidas contraídas em nome da empresa.

No âmbito das relações de consumo, a desconsideração da personalidade jurídica está prevista no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[…]

5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Da leitura do referido artigo, depreende-se que, no caput, foi adotada a “teoria maior”, ao estabelecer requisitos mais rígidos para o afastamento da autonomia patrimonial; já no parágrafo 5° foi acolhida a “teoria menor”, ao exigir apenas a constatação de que a pessoa jurídica está representando um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados, bastando, por exemplo, a comprovação de insolvência ou inadimplência para a desconsideração da personalidade jurídica.

Não há consenso na doutrina sobre a adoção da “teoria menor” pelo Código de Defesa do Consumidor. Os principais argumentos invocados para rechaçar o acolhimento da “teoria menor” nas relações de consumo são os seguintes:

a) o parágrafo 5° não pode ser considerado autônomo em relação ao caput, devendo ser interpretado de forma sistemática, e não meramente literal; em outras palavras, admitir a autonomia do parágrafo 5° resultaria na revogação do caput, tornando-o “letra morta”.

b) a aplicação irrestrita do parágrafo 5° implicaria a revogação do princípio da autonomia patrimonial nas relações de natureza consumerista, desvirtuando a teoria da personalidade jurídica própria das empresas.

c) o instituto da desconsideração representa um aperfeiçoamento da personalidade jurídica das empresas, devendo ser aplicado de forma excepcional e apenas para corrigir desvios ou situações de anormalidade, decorrentes de atos fraudulentos ou abusivos.

d) a adoção da “teoria menor” traria reflexos deletérios para a economia, uma vez que a ausência de autonomia patrimonial, permitindo a responsabilização pessoal dos sócios ou administradores em qualquer hipótese, desestimularia a criação de novos negócios, aumentando demasiadamente os riscos inerentes às atividades empresariais.

Como se vê, para os que defendem que o Código de Defesa do Consumidor não adotou a “teoria menor”, a simples insatisfação do credor, por si só, não autoriza a desconsideração, de modo que o “obstáculo” a que se refere o parágrafo 5° precisa decorrer da utilização fraudulenta ou abusiva da pessoa jurídica.

Por outro lado, a corrente doutrinária que defende o acolhimento da “teoria menor”, sustenta, em apertada síntese, que não há óbice na aplicação autônoma do parágrafo 5° e que o risco empresarial, inerente ao exercício de qualquer atividade econômica, não pode ser suportado pelo consumidor (parte vulnerável/hipossuficiente da relação), mas sim pelos sócios ou administradores. Além disso, argumentam que a redação do parágrafo 5° revela que o próprio legislador teve a intenção de adotar a “teoria menor” no âmbito das relações de consumo.

No campo da Jurisprudência, embora tenha prevalecido o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor adotou a “teoria menor”, tem-se observado, ainda de forma incipiente, decisões recentes caminhando no sentido de que a mera comprovação de inadimplência ou insolvência da empresa, sem a comprovação de que os sócios ou administradores contribuíram para o resultado, ou seja, agiram de má-fé (má-fé administrativa ou negocial), não é suficiente para o afastamento da autonomia patrimonial.

Saliente-se, por fim, que mesmo no âmbito das relações de consumo, por tratar-se de medida excepcional, é necessária a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica para o afastamento da autonomia patrimonial, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.

Por Luiz Alberto Cury Júnior.