A REVISÃO E A ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Passados mais de vinte anos desde a entrada em vigor do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) em 1º de janeiro de 2003, há muito se discute a necessidade de uma reforma e atualização de seu conteúdo, ante as diversas alterações de natureza tecnológica, social e econômica ao longo de duas décadas.

Tendo sido baseado em um anteprojeto da década e 1970[1] que tramitou no Congresso Nacional por aproximadamente trinta anos e, embora tenha havido um esforço para compatibilizá-lo com a Constituição da República de 1988, o Código Civil de 2002 já “nasceu” desatualizado.

Não é por outra razão que ao longo de sua vigência o texto original foi objeto de inúmeras revogações, alterações e inserções. Houve até mesmo mudanças estruturais, a exemplo daquelas decorrentes do Estatuto da Deficiência (Lei nº 13.146/ 2015), que alterou toda a sistemática da capacidade civil ao limitar a incapacidade absoluta apenas aos menores de dezesseis anos (CC, art. 3º), além de instituir o instituto da “tomada de posição apoiada” no art. 1.783-A.

Entre as mudanças com repercussões de natureza econômica, podemos citar a inserção de um capítulo específico para tratar dos regimes jurídicos do condomínio em lotes (art. 1.358-A) e do condomínio em multipropriedade (artigos 1.358-B a 1.358-U) e dos fundos de investimento (artigos 1.368-C a 1.368-F). Também podemos citar a inserção do chamado “direito de laje” no rol dos direitos reais, dispondo sobre uma realidade típica das comunidades e favelas em todo o Brasil.

Apesar das diversas alterações legislativas ao longo dos últimos vinte anos, estas ainda se mostraram insuficientes para permitir que o Código Civil atendesse as diversas demandas atuais.

Neste contexto, o Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, por meio por Ato do Presidente do Senado Federal nº 11/2023 criou um Comissão de Juristas, formada por 38 notáveis proeminentes juristas, professores, juízes, membros de Tribunais Superiores e advogados especialistas das áreas de direito civil e direito comercial de todas as regiões do país, tendo por finalidade a revisão e atualização do Código Civil.

A Comissão é presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão e tem como  vice-presidente o também membro daquele tribunal,  Ministro Marco  Aurélio Belizze. Além disso, foram designados dois  relatores-gerais:  os professores  Flávio Tartuce e Rosa Maria Nery.[2]

Nos termos do seu ato de criação, a Comissão terá o prazo de 180 (centro e oitenta) dias, contados a partir de 04 de setembro, para apresentar as sugestões de alterações as quais passarão pelo crivo dos pares e após o relatório final será encaminhado ao Senado a fim de se transformar em projeto de lei ordinária.

Segundo o Plano de Trabalho, a Comissão foi dividida em oito subcomissões temáticas: parte geral, obrigações e responsabilidade civil, contratos, direito das coisas, direito das famílias, direito das sucessões, direito digital e direito empresarial.

Ao acompanharmos os debates observa-se que uma das prioridades da Comissão é apenas alterar aquilo que for realmente necessário e que tem gerado contendas na doutrina e na jurisprudência. Por sua vez, aqueles dispositivos que a priori possam ser considerados desatualizados, mas que permitam um interpretação correta já seja consagrada pela doutrina e a correspondência,terão sua redação original preservada, evitando celeumas desnecessárias.

Além disso, o norte da revisão e atualização é manter as características que foram enfatizadas pelo autor do Anteprojeto do atual Código, Miguel Reale:  “operabilidade”, “socialidade” e “eticidade”, destacados em sua  Exposição de Motivos, aliada as mudanças legislativas,  sociais,  econômicas e políticas vivenciadas no Brasil e no mundo desde a entrada em vigor do atual Código Civil.  Nesse contexto, é oportuna a designação de uma subcomissão  específica para tratar de direito digital  cujo objeto a cada dia se mostra mais presente na realidade social.

De forma inovadora, seguindo uma tendência de países europeus, uma das principais atualizações será a descoisificação dos animais, que deixarão de ser meros bens móveis semoventes à luz da primeira parte art. 82.[3] e passarão a ter um estatuto condigno com o fato de serem seres senscientes que são, porém ainda não sujeitos de direito.

Entre os temas que merecem alguma atualização da Comissão tem-se necessidade de inserção da alienação fiduciária em garantia em diversos dispositivos, a exemplo do art. 346, inciso II[4], que prevê a sub-rogação legal nos direitos do credor na hipótese em que o adquirente do imóvel hipotecado,  que paga ao credor hipotecário, bem como do terceiro que efetia o pagamento para não ser privado do direito sobre o imóvel. 

Assim, além da sub-rogação legal em favor do adquirente do imóvel que paga ao credor hipotecário poderiam ser previstos, com mesmos efeitos, a sub-rogação em favor daquele que paga dívida garantida por alienação fiduciária.

Outra proposta interessante seria a criação de um regramento geral a respeito da alienação fiduciária de bens móveis e imóveis no Código Civil, sem prejuízo das legislações especiais.

Também será objeto debates da comissão espinhoso tema dos juros legais previstos no art. 406[5]. Trata-se de tema que suscita polêmica doutrinária a respeito de qual taxa deve ser aplicada: o percentual de 1% ao mês com base no art. 161, §1º[6], do Código Tributário Nacional ou a Taxa Selic à vista do disposto no art. 13 da Lei nº 9.065/95 em que pese a natureza híbrida da Taxa Selic (juros e correção monetária). Não há dúvida que a questão possui relevantes efeitos econômicos.

Em direito de família, seria oportuna uma restruturação dos artigos que fazem referência ao instituto da separação judicial, em tese, extinta no direito brasileiro desde o advento da EC nº 66/2010 que alterou o art. 226 da Constituição Federal a fim de prever que o casamento civil poderia ser extinto simplesmente pelo divórcio.

Além disso, mostra-se assaz relevante a inserção dos atuais posicionamentos dos tribunais superiores (STJ e STF) a despeito de diversos temas relacionados ao direito de família, que há muito está em descompasso com a literalidade do texto legal.

Em sede de direito das sucessões, entre os inúmeros temas que com certeza levará aos debates na Comissão se encontra o tema concernente à posição de herdeiro necessário do cônjuge casado sob o regime de separação de bens por força do art. 1.845[7].     

O tema é polêmico pois, ao mesmo tempo que direito de família dá aos cônjuges o direito de escolher o regime de total separação dos bens, impedindo a comunicação dos bens adquiridos ao longo do casamento, a mesma lei civil que ancorada na autonomia privada  permite   a opção pelo regime de bens  acaba restringido tal escolha quando da sucessão ante a qualificação do cônjuge como herdeiro necessário.

Em outros termos, se durante a vida o de cujus quis a total separação dos bens, por qual razão referida vontade não poderia se manter também após a morte. Não raras vezes há litígios que envolvam filhos do de cujus anterior ao casamento e o cônjuge supérstite, que passa herdar de forma concorrente.

Enquanto os trabalhos não terminam e não se dá a publicação do relatório final, é possível apenas antever alguns dos temas que serão debatidos pelas diversas comissões temáticas.  Não obstante,  tudo ainda passará por debates no Parlamento, de modo que muitas das mudanças propostas podem a não ser concretizadas ou sejam modificadas.

Pelos temas tratados, é indubitável que a iniciativa de revisar e atualizar o Código Civil é salutar na medida em que permitirá que a codificação civil possa manter sua atualidade ante as demandas atuais da sociedade brasileira sem perder o norte principiológico que marca a atual legislação civil.

Por Yuri Pimenta Caon

REFERÊNCIAS:

[1] O  Antreprojeto do  atual Código Civil foi formulado por uma comissão de juristas notáveis da época,  capitaneados pelo Professor da  Faculdade de Direito do Largo Sâo Francisco,  Miguel  Reale.  A comissão contou com a participação do  Ministro do  Supremo Tribunal Federal e professor José Carlos Moreira Alves, do professor  Agostinjo Alvim,  Sýlvio Marcondes, Ebert Chamoun,  Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro.

[2]file:///C:/Users/Yuri/Downloads/ARQUIVO_PORTAL_CJCODCIVIL_7890ComissaoESPComissaoCJCODCIVIL20230928.pdf

[3] Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

[4] Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;

[5] Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. 

[6]  Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária.

§ 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês.

[7] Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge

Gabriele Bandeira Borges