O DIREITO DE FAMÍLIA NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

A Lei 10.406/2002, popularmente conhecida como Código Civil é o principal diploma normativo nacional no que tange às tratativas do dia a dia entre particulares, em especial a sua relação com outros indivíduos e seus bens (casamento, celebração de um contrato, compra de um imóvel, herança etc.).

Como a sociedade é dinâmica, o direito precisa evoluir para acompanhar a sua dinamicidade e, neste ponto, nosso código que já atingiu a maioridade há algum tempo (completou 22 anos, em 10 de janeiro de 2024) está passando por um processo de atualização que deverá ser concluído ainda neste ano.

O texto da reforma do Código Civil vem sendo debatido por juristas desde 2023, e neste mês de abril de 2024, a comissão de juristas do STJ aprovou o relatório final, que poderá culminar na alteração de centenas de artigos.

Diante de todas estas alterações, destacamos as principais ocorridas no âmbito do direito de família neste artigo. São elas:

a)      Alteração do conceito de família

Importante alteração trazida no anteprojeto de alteração da Lei Civil reflete na ampliação do conceito de família. Atualmente, nos termos do Art. 1.723 do código civil, família é a união entre homem e mulher com intuito de assim se constituir de forma duradoura.

Na proposta, o conceito sofre uma grande ampliação passando a reconhecer as famílias formadas por vínculos, além daquelas formadas por vínculos não conjugais, como por exemplo a família formada por irmãos que se unem para viver juntos.

O texto da reforma classifica como família a) os casais (hetero ou homoafetivos) que tenham convívio estável, contínuo, duradouro e público; b) as famílias formadas por mães ou pais solos e; c) grupos que vivam sob o mesmo teto e possuam responsabilidades familiares.

Esse aspecto é relevante pois se houver a aprovação desta nova definição, estas entidades familiares passarão a ser titulares de direitos e deveres inerentes à toda família, passando a ter reconhecimento legal e gozando de proteção jurídica.

Cabe destacar que a proposta de alteração nada menciona sobre as famílias paralelas (uma pessoa possui duas ou mais famílias) e nem sobre as famílias poliafetivas (quando há três ou mais pessoas no relacionamento).

b)     Reprodução assistida e Barriga Solidária

Este é um tema novo na proposta uma vez que o Código Civil de 2002 não trata deste assunto ao longo de seus mais de dois mil artigos.  A proposta busca definir regras para o procedimento de reprodução assistida que evitem possíveis discriminações e delimitem outras questões de direitos.

Nesse sentido, o texto da proposta deixa expresso que não haverá qualquer vínculo de filiação e nem direitos sucessórios entre o doador e a pessoa que nascerá do material genético.

Além disso, a doação só será permitida para maiores de 18 anos, sendo proibido que médicos e demais funcionários dos espaços de reprodução humana realizem doação nos locais em que atuam.

O texto também sugere que o sigilo de dados relacionados aos doadores será absoluto, podendo ser quebrado somente mediante decisão judicial.

Além disso, como se depreende do texto da proposta, será proibido o uso das técnicas reprodutivas para o objetivo de modificação genética ou promoção de eugenia. Além disso, foram vedadas a comercialização de óvulos e espermatozóides ou a criação de embriões para fins de investigação científica.

Por fim, a proposta de alteração do código civil também trata do tema das populares “barrigas de aluguel”, permitindo somente aquelas que não incluem recompensa financeira entre as partes (“barrigas solidárias”).

Ademais, termos do anteprojeto, a utilização de útero alheio deverá ser precedida de formalização por escrito que informe expressamente quem serão os pais da futura criança a ser gerada e, deverá ser realizada, ao menos preferencialmente, por alguém que possua parentesco com os futuros pais.

c)      Concepção, Morte e Doação de Órgãos

Os direitos relativos aos fetos e aos nascituros permanecem preservados desde a concepção não havendo grandes alterações. Por outro lado, propõe-se que a personalidade civil de um indivíduo tenha início no nascimento com vida e termine com a morte cerebral.

Nesse sentido, os direitos inerentes a personalidade surgiriam no nascimento com vida, como acontece atualmente, mas se extinguiriam com a decretação da morte cerebral, independente da morte “real” (completa parada de todos os órgãos), uma vez que a ciência não possui meios de reverter este quadro.

Esta alteração, se for aprovada, poderá trazer mais segurança jurídica ao transplante de órgãos e possibilitar, inclusive, o início da sucessão com o diagnóstico da morte cerebral.

O texto também traz a possibilidade de uma pessoa doente deixar diretrizes para tratamentos diante de sua incapacidade de tomar decisões, além de possibilitar que seja determinado quem será seu representante para fazer estas escolhas.

Essas alterações, se aprovadas, terão o condão de retirar a necessidade de autorização familiar para doação de órgãos em casos que o doador falecido tenha autorizado o transplante por escrito. Na ausência de qualquer disposição, esta decisão caberá ao cônjuge e, na falta deste, aos demais familiares da linha sucessória. 

d)     Casamento e união homoafetiva

Nos termos da legislação atual, o Código Civil determina que o casamento e a união estável são realizados entre “homem e mulher”. Contudo, a comunidade LGBT+ vem ganhando cada vez mais espaço na sociedade moderna e anseia por ter direitos reconhecidos.

Nesse sentido, a proposta de alteração sugere a retirada da menção ao termo “homem e mulher”, passando a reconhecer que essas uniões acontecem entre duas pessoas, independentemente de gênero ou orientação sexual, reconhecendo ainda os “conviventes” como um novo estado civil.

Portanto, essa mudança incluiria no texto legal o reconhecimento que já foi dado pelo poder judiciário de que casais homoafetivos possuem direito à união estável (desde 2011) e ao casamento civil (desde 2013). 

e)      Divórcio e Dissolução de União Estável Extrajudicial

“Quando um não quer, dois não ficam casados!” Quem nunca ouviu essa frase? Pois bem, a proposta de mudança também sugere uma alteração tanto para o divórcio quanto para a dissolução da união estável, que poderá ser realizada de forma unilateral.

Essa alteração será bem-vinda pois será útil para determinar o termo inicial do fim da sociedade conjugal e delimitar os direitos e deveres decorrentes deste término. Desde o advento do novo código de processo civil, em 2015, houve a possibilidade de sentenciar-se parcialmente o processo e muitos juízes decretavam o divórcio muitas vezes de maneira sumária levando adiante apenas as questões patrimoniais e/ou relativas à prole.

Com esta alteração, não haverá mais necessidade de intervenção judicial para a celebração do divórcio ou dissolução da união estável, mesmo que não exista consenso entre as partes separandas. Com efeito, qualquer delas poderá pedir a separação sem a necessidade de uma ação judicial.

Além disso, é curioso notar que o projeto também reconhece uma sensível alteração da posição da mulher na sociedade, reconhecendo que atualmente estão inseridas no mercado de trabalho e, por isso, determinando que em caso de efetivação da separação nestes termos, as partes envolvidas deverão compartilhar igualmente as despesas e os cuidados envolvendo filhos, dependentes e até mesmo os animais de estimação.

f)       Animais de estimação

O Pet atualmente já é membro da família do século XXI. São inúmeros os pais e mães de pet existentes e, o direito de gozar da companhia do seu animal de estimação não pode ser negado a quem o queira, nem mesmo pelas normas de condomínio que antigamente restringiam a possibilidade de ter o pet sob o seu teto.

Pois bem, diante dessa dinâmica social, a proposta de alteração do novo texto, estabelece uma nova relação jurídica para os animais, alterando até a mesma a forma como estes serão tratados perante a lei.

Assim, sugere-se que os animais sejam reconhecidos juridicamente como seres sencientes, ou seja, seres capazes de ter sentimentos e direitos, alterando completamente a disposição existente no Código Civil de 2002, que trata os animais como “coisas” (bens móveis).

O texto da reforma sugere que a proteção aos direitos dos animais seja elaborada por lei especial, determinando que deverão ser abordados temas sobre o tratamento físico e ético aos animais.

Dessa forma, apesar de não terem sido alçados ao lugar de membro da família, os animais que hoje são apenas vinculados aos seus tutores como objetos, poderão passar a ter direitos e proteção jurídica especial, que será definida por lei específica.

Como se vê, haverá sensível alteração no que tange ao direito das famílias se a reforma do código civil for aprovada como consta do anteprojeto. Este segue atualmente para análise do Senado e a expectativa é que ele seja votado ainda este mês. Se isso ocorrer, ele deverá também ser votado na câmara dos deputados para seguir seu caminho para a sanção presidencial.

Continuaremos aguardando os próximos passos e torcendo para que as alterações sejam efetivadas de forma a atingir os anseios da sociedade brasileira e realizar os ajustes necessário desta tão importante legislação.

 Por Victor Pacheco Merhi Ribeiro

Gabriele Bandeira Borges