Ribeiro Cury

Ainda Sobre o Problema da Sucessão Causa Mortis de Milhas Aéreas: A Decisão do STJ No Resp Nº 1.878.651/SP

Em recente decisão do ano de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), julgou, por unanimidade, o  REsp nº 1.878.651 interposto pela Tam Linhas Aéreas S.A  (TAM), no âmbito de ação civil pública promovida por associação de consumidores onde se discutia a abusividade de cláusulas do “Programa TAM Fidelidade”, mais precisamente a cláusula 1.8 do Regulamento do Programa  que  proibia a sucessão  de pontos de milhagem obtidas a qualquer título, incluindo a sucessão  causa mortis em favor dos herdeiros do titular.

O relator Min. Moura Ribeiro, após fazer uma distinção entre pontos obtidos a título gratuito como bônus em razão da fidelidade na aquisição de um produto ou serviço fornecido pela TAM ou seus parceiros comerciais e pontos obtidos de modo oneroso, adquiridos pelo  consumidor em programa de aceleração de acúmulo de pontuação, cingiu a discussão apenas aos pontos obtidos de forma gratuita, excluindo da análise do tribunal os pontos obtidos mediante contraprestação pelo consumidor.

A cláusula em questão tinha a seguinte redação: “Cláusula. 1.8. A Pontuação obtida na forma deste Regulamento é pessoal e instransferível, sendo vedada sua transferência para terceiros, a qualquer título, inclusive por sucessão ou herança, dessa forma, no caso de falecimento do Cliente titular do Programa, a conta-corrente será encerrada e a Pontuação existente e as passagens prêmios emitidas serão canceladas”.

Foram apresentados, pelo relator, os seguintes argumentos para afastar a abusividade da cláusula: a) o fato de ser um contrato de adesão aderido pelo consumidor; b) o caráter gratuito dos pontos de fidelidade, que seriam dados pela companhia sem qualquer custo ao consumidor quando da aquisição de bens ou serviços e c) a interpretação restritiva que deve ser realizada aos contratos gratuitos.

Em outros termos, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que não haveria abusividade na cláusula, na medida em que além do consumidor ter plena ciência quanto à incredibilidade dos pontos ao aderir ao programa, o fato de o benefício ser gratuito, com deveres apenas para a TAM não acarretaria a abusividade da cláusula à luz do art. 51 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

Malgrado seja respeitável a decisão, ousamos não concordar.

O primeiro ponto de discordância diz respeito à evidente alienação da decisão em relação à realidade das relações de consumo na atualidade, na qual os fornecedores buscam cada vez maiores vantagens competitivas em relação aos concorrentes não apenas ligadas à qualidade e preço de bens e serviços fornecidos aos consumidores, mas também mediante a e fidelização por intermédio da concessão de benefícios (e.g. programas de bônus, cashbackgiftback, clubes de vantagens etc.).

Desta forma, não é por outra razão que o consumidor, inserido, por exemplo, em um plano de milhagem por fidelidade, pode ser levado a comprar uma passagem aérea mais cara que possa dar em troca um benefício como as pontuações e participação em clubes de vantagens do que adquirir a passagem de outra companhia aérea, ainda que mais barata. A fidelização se torna, assim, um verdadeiro ativo das empresas em um mercado cada vez mais competitivo.

O que se sobreleva na análise das situações semelhantes é a necessária observância de situações fáticas, padrões de comportamento e interesses envolvidos na contratação que configuram as circunstâncias contratuais a serem levadas quando da interpretação do contrato, mormente quando se trata do exame da abusividade ou não da cláusula

Evidente que tais milhas ou bônus não são meras liberalidades como entendeu o r. acórdão em razão da aparente unilateralidade do contrato, com obrigações apenas para a companhia, o que ensejaria a necessária interpretação restritiva do negócio jurídicos benéficos por força do disposto no art. 114 do Código Civil (“Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”).

Entendemos que a causa da atribuição consubstanciada na aquisição de um direito de pontuação pelo cliente em razão da fidelidade pela aquisição de bem ou serviços da companhia não está fundada na causa donandi típica das doações e demais contratos benéficos. Diversamente, a atribuição da pontuação está relacionada à expectativa da companhia no sentido de que referida vantagem ao consumidor ensejará maior expectativa de consumo futuro, engajamento da marca própria e de parceiros comerciais envolvidos, entre outros valores intangíveis que possuem nítido valor patrimonial. Não há o mero benefício sem qualquer contrapartida.

Basta observa também que os pontos ou milhas podem ser objeto de negócios jurídicos, possuindo um nítido aspecto patrimonial. Não é novidade o vasto mercado paralelo de comercialização de milhas aéreas explorados por algumas empresas a exemplo da “123 Milhas”, “Hot Milhas”, “Max Milhas”, entre outras congêneres, sem quaisquer restrições por parte das companhias aéreas.

Logo, ressaltado o caráter patrimonial, é irrelevante o argumento apresentado pela companhia aérea relacionado a um suposto caráter personalíssimo dos pontos, a afastar a sucessão hereditária, pelo simples fato destes serem decorrentes de um programa de fidelização ligado a um consumidor específico.

Entendemos, portanto, que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça pelo fato de ter se restringido a um caso específico, não é definitivo, uma vez que há vários aspectos que deverão ser analisados em futuras decisões, entre elas as circunstâncias negociais da moderna sociedade de consumo que devem balizar a interpretação dos contratos que envolvam programas de fidelização de consumidores.  Esperemos, portanto, as cenas do próximo capítulo.

Por Yuri Pimenta Caon