- 1º O conceito de relação jurídica
Entre os conceitos mais importantes para a ciência jurídica está o de relação jurídica. Fruto do pandectismo alemão do século XIX, a “relação jurídica” consiste em conceito instrumental fundamental para realização da atividade própria da Ciência do Direito que é apontar quais termos se compõem os enunciados e proposições que constituem as regras jurídicas e quais, através dos tempos, foram adotadas e aplicas e quem são seus destinatários, e também, a atividade de interpretar o conteúdo das regras jurídicas e delas inferir normas mais gerais, até a completude do sistema jurídico.[1]
Por relação jurídica, deve-se entender como toda aquela relação social que possui relevância para o direito, ou como preceitua Pontes de Miranda, a relação jurídica é a relação inter-humana, a que a regra jurídica incidindo sobre os fatos, torna jurídica.[2]
Diferentemente das demais relações sociais ou intersubjetivas (e.g. relações de etiqueta, relações religiosas, relações morais etc.), a relação jurídica é aquela que decorrente de um fato jurídico, passa integrar o mundo jurídico (plano da eficácia) ou constituindo relação inter-humana, constitua ela mesmo elemento do fato jurídico, ingressando imediatamente no mundo jurídico como relação jurídica (e.g. casamento, parentesco, nacionalidade). Essas últimas são chamadas relações jurídicas básicas ou fundamentais (se dão no plano da existência), e as segundas relações jurídicas intra-jurídicas ou eficaciais.
A diferença fundamental em relação aos dois tipos de relações jurídicas consiste no fato de que as relações eficácias são consideradas pelo direito como criação sua, admitindo alterações que não seriam admissíveis no mundo dos fatos (e.g. a possibilidade de cessão do crédito, alterando o sujeito ativo).Para as relações básicas ou fundamentais, não é necessário que, desde logo, estas deem origem a direitos e deveres, podendo inclusive nunca terem nenhum[3]. Segundo Marcos Bernardes de Mello, exemplo do aludido seria o contrato sob condição suspensiva: por ser tratar de relação intersubjetiva, desde já se dá sua entrada no mundo jurídico como relação jurídica básica, porém sem que se produza de imediato os efeitos que constituem seu conteúdo específico. A relação jurídica, no exemplo, é o efeito mínimo do fato jurídico que dele irradia. [4]
A relação jurídica, portanto, é toda relação intersubjetiva que deriva da incidência de uma norma jurídica sobre um suporte fático, juridicizando-o (= tornar-se fato jurídico), e assim entra no mundo jurídico , bem como aquela que também originada de um fato jurídico , nasce já dentro do mundo jurídico (plano da eficácia).
- 2º A estrutura da relação jurídica
.Em termos gerais, toda relação jurídica é formada pelos seguintes elementos (ou termos): sujeitos (ativo e passivo) e objeto; e têm por conteúdo no plano da eficácia os seguintes elementos: direitos, deveres pretensões, obrigações, ações e situações de acionado, exceções e situações de excepcionado. De modo ilustrativo, considerando tanto elemento quanto o conteúdo eficacial, a relação jurídica pode ser apresentada segundo o seguinte modelo[5]:
Alguns autores[6], também atribuem à estrutura das relações jurídicas outros dois elementos: o fato jurídico do qual que dá origem à relação jurídica, geralmente apresentados pelas iniciais “FJ” e o elemento lateral chamada garantia (“G”). Embora respeitável o entendimento, defende-se que referidos elementos são desnecessários para descrever a estrutura da relação jurídica. Em relação ao fato jurídico esse já é pressuposto da existência da relação jurídica, não constituindo, assim, um dos seus elementos.
Pode-se afirmar que inexiste relação jurídica que não seja oriunda de um fato jurídico, logo não preciso realçar o fato jurídico como elemento da relação jurídica, pois é pressuposto. A afirmação é ainda mais clara quando se observa a chamada “causalidade jurídica”, da qual se pode inferir que o fato jurídico é sempre prius ante a relação jurídica dele oriunda. A causalidade jurídica se dá do seguinte modo: a regra jurídica (direito objetivo) incide sobre determinado suporte fático concreto (fatos ou fatos jurídicos) dando origem ao fato jurídico, e este, adentrado no mundo jurídico, irradia eficácia, criando, modificando ou extinguindo direitos, deveres, pretensões, obrigações, exceções, situações de excepcionado, ações e situações de acionado.[7]
Quanto ao elemento garantia, este já é englobado pela chamada ação de direito material, que constitui não um elemento lateral à relação jurídica, mas sim, uma das posições jurídicas subjetivas que compõem (ou podem compor) seu conteúdo eficacial. A garantia nada mais é do que o reconhecimento de que todo direito possui uma ação que o assegura, tal como era expresso nos artigos 75[8] e 76[9] do Código Civil de 1916.
Embora não haja dispositivo semelhante no Código Civil de 2022, fruto de críticas ou verdadeiro lobby de processualistas preocupados com uma suposta autonomia cientifica do direito processual civil, não é possível dizer, contudo, que não permaneça a necessidade da categoria.
A ação de direito material é “poder agir”, e que surge no polo ativo da relação jurídica, exatamente quando a pretensão (poder exigir) é violada. Na moderna sociedade, em que o Estado se reservou o monopólio da Justiça e vedou a autotutela, a ação de direito material se exerce (é “canalizada”[10]) mediante a “ação” de direito processual (= remédio jurídico). A “ação” corresponde ao remédio jurídico empregado, não confundindo com a ação (sem aspas) de direito material (pré-processual).
Apesar disso, outras figuras mostram evidentemente a ação de direito material, independentemente de qualquer provimento jurisdicional, como se pode observar da “legítima defesa”, do “desforço imediato para proteção possessória” (CC, art. 1.210, §1º), o “cumprimento de obrigação de fazer assinalado a terceiro em caso de urgência” (CC. Art. 249, parágrafo único) e a “compensação” entre dívidas (CC, art. 368 e s.s).”
A representação gráfica desse segundo grupo de autores seria a seguinte:
- 3º Princípios da relação jurídica
A estrutura da relação jurídica, contudo, somente tem sentido se evidenciados os princípios jurídicos que a regem: a) intersubjetividade (S’R S”); b) essencialidade do objeto; c) da correspectividade entre direito e dever, pretensão e obrigação etc (princípios essenciais) e d) da extensão entre direito, pretensão etc.[11]
- Princípio da intersubjetividade
Para o “princípio da intersubjetividade” somente pode haver relação jurídica entre no mínimo dois sujeitos de direito em uma relação lato senso entre poder (sujeito ativo) e sujeição (sujeito passivo). Em outros termos, o sujeito passivo pode exigir determinada conduta comissiva ou omissiva em relação ao sujeito passivo. Importante destacar que não se exige que os sujeitos sejam pessoas , podendo figurar como termos da relação jurídica entre outros despersonalizados, respeitadas suas particularidades (e.g. massa falida, o condomínio edilício, o espólio, a herança jacente, a sociedade não personificada etc); nem mesmo se exige que os figurantes, sendo pessoa, tenham capacidade de obrar (capacidade de fato ou capacidade de agir), bastando a capacidade de direito ou jurídica.
Segundo o “princípio da intersubjetividade”, a relação jurídica pode ser formar: a) entre dois ou mais sujeitos determinados ou determináveis (S’R S’’) ou b) entre um sujeito determinado ou determinável, e o sujeito passivo total ou alter (S’ R alter ou alter R S”) conforme o direito e a pretensão dele decorrente sejam oponíveis relativamente a determinado sujeito passivo (direito relativo) ou a totalidade das pessoas (direitos absolutos). Exemplo de direito relativo é o originário de contrato, (e.g no contrato de compra e venda, o vendedor é compelido a entregar a coisa ao passo que o comprador está sujeito a pagar o preço). Os direitos absolutos, por sua vez, são os direitos de personalidade e os direitos reais, com destaque para propriedade ou domínio. O proprietário tem o direito e a pretensão de exigir que a totalidade das pessoas (alter) se abstenha de interferi no seu direito e, ao passo que este tem o dever e a obrigação de respeitá-lo, abstendo-se de realizar condutas que o violem.
A consequência prática do “princípio da intersubjetividade” é negar a existência de relação jurídica quando houver situação jurídica inerente à apenas um sujeito. Não havendo dois ou mais sujeitos determinados ou determináveis ou o em relação um com o outro, não há que se falar em relação jurídica. Destaca-se que a situação assinalada, de apenas um sujeito sem relação, não se confunde com as relações em que um dos sujeitos não se apresenta de plano. Na herança jacente, aberta a sucessão, abstratamente é possível falar na existência de um herdeiro a partir das normas de direitos das sucessões. Assim, conforme dispõe o art. 1.819 do Código Civil[12], não tendo o falecido deixado testamento, e sendo os sucessores potenciais desconhecidos , os bens da herança após serem arrecados ficam sob a guarda e administração de um curador. Apresentado o herdeiro, os bens lhe são entregues. Note-se que embora, a princípio, não se soubesse quem era o sujeito passivo da relação jurídica não é possível afirmar que este era inexistente.
- Princípio da essencialidade do objeto
Aqui é preciso fazer a seguinte distinção inicial: bem e objeto de direito não se confundem. O bem é conceito do mundo fático, ao passo que objeto de direito é conceito do plano da eficácia, e já supõe uma situação jurídica que atribui um bem a seu titular. Objeto de direito sobre o qual recai direitos e deveres que sejam conteúdo de uma relação jurídica, é objeto da relação jurídica.
Segundo o “princípio da essencialidade do objeto” toda relação jurídica necessita de ter um objeto, os quais podem ser (i) coisas, (ii) bens imateriais ou (iii) promessa de prestação comissiva ou omissiva (bens em sentido amplo). Faltante o objeto, inexiste relação jurídica.
- Princípio da correspectividade entre direitos e deveres
O princípio da correspectividade entre direitos e deveres estabelece que para que exista uma relação jurídica, é necessário que o sujeito ativo tenha, no mínimo, um dever que corresponda a um dever titularizado pelo sujeito passivo. Em outros termos, “ a todo direito corresponde um dever”. Em relação aos outros elementos do conteúdo eficacial o mesmo também ocorre. Assim, tem-se que no polo ativo a pretensão, a ação e a exceção que correspondem, respectivamente, no polo passivo, à obrigação, situação de acionado e situação de excetuado.
- Princípio da coextensão de direito, pretensão, ação
. O que o princípio da coextensão entre direito, pretensão e ação traduz é a sucessão eficacial ao longo da vida da relação jurídica. Imagine-se um contrato de compra e venda a prazo, por meio do qual, considerando apenas o lado passivo, o comprador se comprometeu a pagar o preço no prazo de 15 (quinze) dia. Celebrado o contrato nasce o direito de crédito do vendedor quanto ao preço e o correspectivo dever do devedor quanto a pagamento do preço. Até que se atinja o termo convencionado, o crédito, embora existente, é inexigível (CC, art. 131)[13] Em outros termos, há apenas direito e correspectivo dever. Porém, atingido o termo para pagamento, ao lado do direito nasce a pretensão, tornando exigível o crédito, tendo como correspectivo, no polo passivo, a obrigação. Ainda no exemplo imaginado, caso o devedor venha a inadimplir sua obrigação, imediatamente nascerá a favor do credor a ação de direito material, legitimando que a parte lesada tome as medidas previstas no ordenamento jurídico para a satisfação do seu direito subjetivo de crédito.
Ainda, não há qualquer obstáculo para que que a pretensão nasça no momento imediatamente posterior ao surgimento do direito, a exemplo das dívidas sem prazo, ou nos casos dos direitos absolutos, em que o dever de abstenção do alter é desde já exigível (= pretensão) pelo titular do direito (e.g. domínio, direitos da personalidade etc.).
Embora relevante, o princípio da coextensão entre direito, pretensão e ação não é essencial à relação jurídica. Vale dizer, há a relação jurídica ainda que não exista eventual pretensão e a fortiori a ação de direito material. Para ilustrar, basta pensar nos chamados “direitos mutilados”[14], caracterizados pela existência do direito sem pretensão que o faça exigível, a exemplo dos chamados deveres morais ou obrigações naturais. Nas dívidas de jogo ou aposta, embora haja a dívida esta é inexigível por parte do credor (CC,art. 814[15]).
Por Yuri Pimenta Caon.
REFERÊNCIAS:
[1] Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo I., Prefácio.
[2] PONTES DE MIRANDA. Franciso Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo I. §6.
[3] PONTES DE MIRADA, Francisco C. Tratado de Direito Privado. Tomo I, §39.
[4] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Eficácia 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 177. […] O negócio jurídico bilateral, e.g. em face de ter suporte fático caracterizado por relação intersubjetiva, enquanto pendente condição suspensiva gera, desde sua entrada no mundo jurídico, relação jurídica, sem que produza imediatamente os efeitos que constituem seu conteúdo específico […]
[5] Modelo em parte inspirado no extraído de MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Validade. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 161
[6] Cf. SIMÕES, Marcel Edvar. O Modelo Posicional-Relacional na Teoria Gera do Direito. Núria Fabris: Porto Alegre, 2021.
[7] VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 197. […] […] a relação jurídica, em sentido amplo ou em sentido estrito, é efeito de uma hipótese fática sobre um dato de fato. Este, precisamente, por ser o ponto de incidência da hipótese, é fato jurídico, A relação entre fato jurídico e sua eficácia ( plexo de efeitos) é relação de causalidade jurídica: relação estatuída, constituída por norma jurídica. É norma que constituiu ou desconstituiu a relação de causalidade jurídica […]
[8] Art. 75. A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura
[9] Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legitimo interesse econômico, ou moral. Parágrafo único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou á sua família.
[10] O autor da expressão é Marcel Edvar Simões ( A ação em sentido material ainda existe em nosso ordenamento? (parte 1) . Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-mai-16/direito-civil-atual-acao-sentido-material-ainda-existe-nosso-sistema-parte/. Acesso em 16 abril de 2025.
[11] Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Validade. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p.161
[12] Art. 1.819. Falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância.
[13] Art. 131. O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito.
[14] PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VI, §640. Oportuna a seguinte lição […] Por outro lado, tais direitos mutilados não são todos de um só tipo: alguns mantém a pretensão sem ação; outros, a pretensão sem a ação autônoma, porém com exceção; alguns, ainda, permitem que sejam objeto de negócio jurídico declarativo, ou de negócios jurídicos de garantia, e outros, não . O corte, a amputação, não é sempre à mesma altura. Além disso, às vezes se lhes tira a compensabilidade. Seja como for, todo direito mutilado supõe esquema de direito, a que algo se amputou […]
[15] Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito. § 1º Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé. § 2º O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos. § 3º Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares.