HERANÇA DIGITAL: ENTRE DESAFIOS E QUESTÕES JURÍDICAS PARA A TRANSMISSÃO DE BENS VIRTUAIS

Com o avanço cada vez maior da tecnologia e, consequentemente, da vida em sociedade, ou melhor, da vida “digital”, é de se esperar que o ordenamento jurídico brasileiro disponha sobre questões cada vez mais relevantes e atuais, como é o caso da herança digital.

De modo geral, a herança é o conjunto de bens transmitidos pelo de cujus, isto é, da pessoa falecida, sendo compreendida como “um todo unitário”, de acordo com o art. 1791, do Código Civil, e formada automaticamente pela morte.

Por sua vez, a herança digital é um tema contemporâneo e latente. Para Klein (2021. p. 59)[1], esta consiste em “em bens incorpóreos que estão disponíveis no ambiente virtual. Em outras palavras, herança digital é o conjunto de bens digitais transmissíveis com o falecimento do titular para seus sucessores, sejam legítimos ou testamentários”

Diante desse cenário, apesar do avanço do metaverso[2], da adoção de armazenamento em nuvem para diversos tipos de arquivos, da crescente utilização das redes sociais como plataforma de trabalho para youtubers e influenciadores, por exemplo, e da consolidação das criptomoedas, ainda emerge no Direito uma lacuna a respeito do tema.

Isto porque ainda não há regulamentação específica acerca do assunto. O Projeto de Lei - PL 3050/2020 está tramitando na Câmara dos Deputados[3] e visa alterar o Código Civil, especialmente no seu artigo 1.788, para que familiares do(a) falecido(a) possam obter acesso a arquivos ou contas armazenadas em serviços de internet.

Inclusive, a questão já foi objeto do Enunciado 687 da IX Jornada de Direito Civil, bem como é uma das propostas da Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil, através da Subcomissão de Direito das Sucessões[4], que visa regulamentar a herança digital. Essa medida reflete a necessidade de adequar a legislação às mudanças tecnológicas.

Sabemos que com a morte, os direitos e as obrigações de natureza personalíssima desaparecem, e somente se transmitem ao(s) herdeiro(s) os direitos de natureza não personalíssima, como os patrimoniais. Assim, a discussão esbarra em direitos de personalidade, notadamente o direito à privacidade, eis que os arquivos contêm informações pessoais.

Imagine a situação em que a família tivesse acesso a todas as conversas e ao histórico de internet do(a) falecido(a). Nessa esteira, surge dúvidas de como regulamentar a sucessão dos dados em rede se não houver um testamento; como regulamentar a tributação de criptomoedas e NFTs[5], entre outras questões pertinentes.

Bens digitais, como músicas, livros e skins de jogos, exemplificam um aspecto valioso no ambiente digital, podendo atingir valores altos, chegando até mesmo a custar milhares de reais.

Ao analisar as limitações e circunstâncias legislativas que envolvem o assunto, observa-se que, atualmente, algumas redes sociais possuem políticas de uso específicas sobre o que ocorre com a conta de um usuário falecido. Isso é evidenciado, por exemplo, nas redes sociais pertencentes ao grupo Meta, como Facebook[6] e Instagram[7]. Nestas plataformas é possível transformar uma conta em memorial ou optar pela remoção da conta, mediante solicitação de um familiar ou representante legal.

A reprodução jurídica referente à gestão desses dados sensíveis permanece como um desafio, o que reflete na jurisprudência pátria, que vem caminhando em passos curtos.

No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[8], houve decisão proferida em 2021 que julgou improcedente o pedido de manutenção do perfil da filha da autora no Facebook após a sua morte, indo ao encontro dos termos de uso da plataforma e mantendo a decisão do Facebook de encerrar o perfil, eis que o acesso direto com senha fere direito personalíssimo do “usuário, não se transmitindo por herança no caso dos autos, eis que ausente qualquer conteúdo patrimonial dele oriundo”.

Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no ano de 2022, negou acesso às informações pessoais de um usuário falecido, sob fundamento de que os direitos de personalidade são intransmissíveis e o pedido só poderia ser autorizado caso houvesse “relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos”[9].

Dessa forma, observamos que a matéria está sendo julgada de maneira superficial, ignorando nuances ou detalhes importantes. É preciso abordá-la levando considerando a distinção entre o acesso do acervo digital de natureza patrimonial e o personalíssimo, sendo este último sujeito a uma avaliação individualizada, principalmente ao lidar com influencers, por exemplo.

Portanto, fica evidente a necessidade de promover o debate para que haja regulamentação específica que concilie a proteção dos direitos de personalidade com a sucessão eficaz dos bens digitais.

Por Gabriele Bandeira Borges.


REFERÊNCIAS:

[1] KLEIN, Júlia Schroeder Bald. A (in)transmissibilidade da herança digital na sociedade da informação. São Paulo: Dialética, 2021. p. 59.

[2] O metaverso é um espaço virtual coletivo que busca simular a realidade, utilizando elementos de realidade virtual e aumentada.

[3] Portal da Câmara dos Deputados. Camara.leg.br. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao/?idProposicao=2254247>. Acesso em: 18 dez. 2023. ‌

[4] DA, S.; DE, D.; DAS. PARECER No 1 -SUBCOMISSÃO DE DIREITO DAS SUCESSÕES DA CJCODCIVIL. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/c186eb20-1e41-4e5c-b02c-80cb10d13b26>. Acesso em: 19 dez. 2023. ‌

[5] Sigla para o termo em inglês "Non-Fungible Token", que pode ser traduzido para o português como "Token Não Fungível". Eles são ativos digitais únicos que representam a propriedade de itens como uma obra de arte, músicas, vídeos e até mesmo imóveis virtuais.

[6] Como informar ao Facebook sobre o falecimento de uma pessoa ou sobre uma conta que precisa ser transformada em memorial. | Central de Ajuda do Facebook. Facebook.com. Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/help/150486848354038>. Acesso em: 18 dez. 2023.

[7] Sobre contas do Instagram transformadas em memorial | Central de Ajuda do Instagram. Facebook.com. Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/help/instagram/231764660354188>. Acesso em: 18 dez. 2023. ‌

[8] TJ-SP - AC: 11196886620198260100 SP 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2021

[9] TJ-MG - AI: 10000211906755001 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 27/01/2022, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/01/2022

Gabriele Bandeira Borges